Todo microcosmo, toda região habitada, tem o que poderíamos chamar de um “Centro”, ou seja, um lugar sagrado por excelência.
Estamos em presença de uma geografia sagrada e mítica, a única efetivamente real, e não de uma geografia profana, “objetiva”, de certa forma abstrata e não essencial, construção teórica de um espaço e de um mundo que não é habitado e por isso é desconhecido.
Construção de um “Centro”
Vimos que não só os templos supostamente se encontravam no “centro do Mundo”, mas que todo lugar sagrado, todo lugar que manifestava uma inserção do sagrado no espaço profano, era também considerado como um “centro”. Esses espaços sagrados também podiam ser construídos.
Começamos a compreender hoje (1952) algo que o século XIX não podia nem mesmo pressentir: que o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos clamuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais poderemos extirpá-los.
Começamos a ver hoje que a parte a-histórica de todo ser humano são se perde, como se pensava no século XIX, no reino animal e, finalmente, na "Vida", mas, ao contrário, bifurca-se e eleva-se bem acima dela: essa parte a-histórica do ser humano traz, tal qual uma medalha, a marca da lembrança de uma existência mais rica, mais completa, quase beatificante. Quando um ser historicamente condicionado, por exemplo um ocidental dos dias de hoje, deixa-se invadir pela sua própria parte não-histórica (o que acontece com muito mais freqüência e bem mais radicalmente do que ele imagina), não é necessariamente para retroceder ao estado animal da humanidade, para descer às origens mais profundas da vida orgânica: inúmeras vezes, ele reintegra pelas imagens e simbolos que utiliza um estado paradisíaco do homem primordial (qualquer que seja a existência concreta desse último, pois esse “homem primordial” apresenta-se sobretudo como um arquétipo impossível de “realizar-se” plenamente em uma existência qualquer). Escapando à sua historicidade, o homem não abdica da qualidade de ser humano para se perder na “animalidade"; ele reencontra a linguagem e, às vezes, a experiência de um "paraíso perdido". Os sonhos, os devaneios, as imagens de suas nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos etc., tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu “momento histórico". (pagina 9)
A mais pálida das existências está repleta de símbolos, o homem mais ”realista" vive de imagens.
A dessacralização incessante do homem moderno alterou o conteúdo da sua vida espiritual; ela não rompeu com as matrizes da sua imaginação: todo um refugo mitológico sobrevive nas zonas mal controladas.
Todas as citações em:
Mircea Eliade. Imagens e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. (1ª edição, França, 1952)